domingo, 30 de janeiro de 2011

CAOS





Capítulo 1:

A lenda de Dexter Blad.

O sol estava quente, mais do que de costume naquele domingo.  Os habitantes de Ouro & Platina estavam em sua maioria se limitando nas sombras de dentro de suas casas, apesar de que mesmo assim não dava para fugir muito do ar quente que maltratava seus corpos. É sempre assim no ápice do verão. Como se vivessem dentro de uma caldeira.
A igreja não funcionou naquele dia, o padre faleceu em seus trabalhos espirituais, e quando digo espirituais, me refiro à tradicional visita todas as noites à casa da senhora Bark, religiosamente depois da meia noite e cinco; dava até para acertar o relógio ao vê-lo atravessando a praça as vinte e três e cinqüenta.
E com essa tragédia, de um homem que não resistia aos prazeres da carne, mas era definitivamente um homem bom, a igreja foi selada. O domingo apenas se tornou mais um dia quente, um dos mais quentes e mais silenciosos daquele verão. Talvez por isso a chegada de um estranho, com as ruas quase desertas, foi mais notada do que numa segunda feira agitada pelo comércio habitual da cidade.  Em seu cavalo acinzentado, de chapéu largo em um tom desbotado negro, cobrindo o tronco com uma manta vermelha caindo sobre as ancas do seu animal, cavalgando a passos lentos adentrou de modo despreocupado sem se importar com olhares curiosos. Parou diante de um menino que o encarou assustado e fascinado ao mesmo tempo. Os olhos do garoto iam ao rosto do homem e ao rifle que ele tinha preso à cela de seu cavalo; com a voz rouca e grave se direcionou ao jovem:

- Me diga filho, qual hotel você recomendaria a um velho forasteiro descansar?

O menino demorou mais que o normal para responder, mas fez isso com um sorriso largo como se estivesse vendo seu herói, que tanto lia nos quadrinhos:

- O Céu Platinado, Señor- E apontando com o braço esquerdo para o hotel prosseguiu – Venha. Eu mostro o caminho, não é muito longe.

E começou a caminhar olhando para trás para ver se o seguia. E assim o estranho fez.  Olhares agora fitavam os dois, tanto os que estavam fora aguentando o calor como os de dentro, se sentindo seguros por trás das janelas gradeadas. Enquanto isso o homem em seu cavalo ignorava toda essa platéia. Não parecia se incomodar com o calor e nem que estava cansado depois de atravessar o deserto seco na época mais ensolarada do ano. Parecia repousado em sua montaria seguindo um garoto de sapatos sujos de terra vermelha, animado como se guiasse alguém famoso ou importante. Não demorou muito para chegar ao Hotel Céu Platinado, um estabelecimento modesto, mas refinado. Com cerca de dez andares e largo como um prédio de apartamentos comerciais, a fachada é que era meio incomum, algo que fazia se destacar de qualquer outro hotel das redondezas. Possuía uma enorme porta de vidro fumê, como de um banco, só que mais alto e mais largo; às vezes o coitado do porteiro tinha dificuldades nos dias de inverno com ela. A porta ainda tinha um contorno de metal trabalhado com formas mostrando figuras bíblicas, o que para uns era de certa beleza e conforto estar em um local em que a fé existia e era respeitada, mas para outros era meio assustador devido à forma que a igreja estava se manifestando nessas épocas contra os que eles consideravam ateus. Na fachada ainda havia enormes árvores talhadas na parede. Parecia ser algo mais antigo que reutilizaram, mas ninguém sabia de onde foi antes, exceto o dono, Alúcio Parkimedes (se é que esse era mesmo o nome dele), que nunca revelara a ninguém.
O estranho desceu do cavalo com certa elegância, um tanto incomum para um pobre peregrino, e logo que seus pés tocaram o solo veio um rapaz todo engomado com as vestes de funcionário do hotel para encaminhar sua montaria até os estábulos. O jovem, apesar da rapidez em fazer seu serviço, não encarou o novo hóspede e nem deu as boas vindas como foi ensinado a fazer sempre  ao atender alguém. Apenas veio e segurou as rédeas do cavalo, esperou o rifle ser retirado e aguardou por alguns meros segundos alguma desaprovação do dono que não se manifestara, virou-se continuando sua função. O estranho descalçou as luvas negras, que apenas deixavam os dedos indicadores expostos, colocou uma das mãos num bolso de sua calça e tirou uma carteira de metal. Da carteira retirou uma nota cuidadosamente dobrada e deu ao menino sem nem olhar se o garoto ainda estava ali ou não:

- Tome filho. Pela sua cordialidade e por ser prestativo.

 Ó não, señor... Não é preciso me recompensar por isso. Faço com muito bom gosto. – respondeu sem vacilar e sorrindo.

- Então aceite pela ausência de seu medo.

E com essa última frase, o menino esticou o braço e pegou o agrado oferecido pelo estranho que seguiu em direção a entrada do hotel. Sem entender, ele ficou observando a forma como o porteiro, o senhor Big Jack Johnson, se tremia ao abrir a grande porta com os olhos fixos para o chão, em total silêncio, o que nunca foi de seu costume. Após fechar a porta, Big Jack soltou um suspiro de alívio e enxugou a testa, ainda tremendo, com um lenço que sempre traz consigo.
Que pena” – Pensou o menino. “Se ele não se tremesse de medo que nem gelatina teria ganhado um trocado do moço gentil.”



* * *


O sol continuou seu trabalho iluminando tudo e castigando a todos com o calor que parecia nunca ir embora, pelo menos não até a chegada da noite trazendo com ela o alívio tão desejado. Foi no finzinho da tarde, com o céu apenas com um horizonte queimando, que chegou a casa o filho mais novo da família Lock, constituída por sete integrantes: o pai Richard, sua esposa Fox e seus cinco filhos na ordem de nascimento; Knox, um garoto de 16 anos forte como o pai, Sky, muito parecida com a beleza de sua mãe e sua irmã gêmea Aria, que mesmo não sendo tão bela como a irmã, chama atenção pela sua personalidade e sorriso marcante, ambas com 14 anos, e por último o caçula Pax, um menino de 11 anos que parece ter herdado os piores defeitos dos pais. E com eles ainda há o pai de Fox, que ficou conhecido simplesmente como Aeon,um velho que apesar de ter perdido a perna na Guerra civil, manteve seu espírito sempre jovem e a capacidade de nunca se entregar a nada de ruim da vida. Uma lição que mais tarde seria a base para Pax moldar sua personalidade nos dias difíceis que estavam por vir.

Com uma animação, estampada nitidamente em seu rosto, o menino foi diretamente a procura de seu pai para lhe contar sobre o encontro com o estranho que chegara à cidade. Aproximou-se da poltrona de escritório onde sabia que estaria e parou a sua frente com um enorme sorriso nos lábios e as mãos para trás. Ficou assim por certo tempo, até que seu pai abaixou o jornal e o encarou rapidamente:

- Está atrasado novamente, sua mãe já estava começando a ficar preocupada. - Retomando a sua leitura prosseguiu. - Por que demorou dessa vez, Pax?

- Não precisei voltar mais cedo para comer.

- Não? E pode me dizer por quê?

- Sim, sim. Hoje ajudei um forasteiro a chegar até o Hotel Céu Platinado, e como recompensa pela minha gentileza ele me deu uma nota que deu para pagar meu lanche, do Tommy e do Hugo.

- Não crê que seu ato bondoso não fora um pouco de desperdício? Afinal você poderia ter guardado.

- É, poderia. – Sua mão começa a deslizar na borda da mesa do escritório de seu pai. Pelo toque, mesmo com o calor, dá para sentir que a pedra permanece fria, quase gélida. Suas pernas agora acompanham seu braço, que acompanha seus dedos que imitam passos de um homem a caminhar sem pressa. Sem pressa ou preocupação como o estranho generoso.
Seu pai baixa o jornal novamente:

-Não há mal algum em ser generoso, filho. Mas também não há mal algum em ser prevenido. Sei que estamos em uma época relativamente próspera, mas já houve um passado em que até mesmo eu quase perdi a fé de dias como hoje. – Pax olha seu pai, mas não diz nada. – Agora vá se limpar e tome banho dessa vez, nada de só lavar as mãos e molhar a cabeça, sua mãe teve muito trabalho pra lavar o seu lençol da última vez.

E obedecendo, o menino saiu correndo indo direto para a escada. Seu pai não sabia, mas seu filho tinha lhe trazido uma informação que poderia fazer tudo ser diferente, algo que poderia dar tempo para o prefeito Hunt se preparar para evitar seu assassinato. O seu e o de muitos outros.



* * *

As mãos do porteiro Big Jack Johnson ainda estavam tremendo ao tentar acender seu cigarro Black e somente depois de umas dez tragadas foi que seu coração começou a parar de bater forte e descompassado. A testa suada, o corpo frio, tudo isso começava a se dissipar, menos o seu olhar de quem acabara de ver um fantasma. Ele nem foi almoçar no velho “Estaleiro”, seu lugar habitual; afinal, comida farta e barata sempre foi sua preferência. Não, dessa vez ele não foi. Suas pernas, que antes tremiam, agora iam às pressas diretamente a uma parte da cidade não muito querida, a parte mais velha. Lá ele sabia que encontraria seu velho comandante de batalha, o agora Senhor “Voz de Navalha”, um homem decadente que perdeu a honra nos tempos de guerra e tornara-se um mercenário até ser preso e quase executado por traição. Foi poupado delatando e caçando seus parceiros e tornou-se tão bom nisso que por uns anos era seu ofício - capturar gente de sua laia. Mas com as décadas apenas transformou-se em um velho decrépito e falido que de medalha apenas restou uma enorme cicatriz que nasce abaixo de seu olho direito, segue indo para seu queixo, pescoço e vai até seu ombro esquerdo. No processo sua voz pagou o preço, razão de sua alcunha agora. O velho se alojava no lugar de sempre, de domingo a domingo, jogando cartas e bebendo com homens tão desprezíveis quanto ele. Quando Big Jack entrou pela porta em um estado menos agitado foi direto ao seu antigo comandante sem nem pedir permissão ao dono do lugar, algo que é sempre considerado um erro que quase sempre acaba sentenciado em morte. Antes de o pobre conseguir abrir a boca seu queixo foi impedido de prosseguir pelo longo cano de uma velha carabina, a única voz que saiu foi de quem a portava:

- Perdeu o amor pela vida, gordo?

- Guarde esse cano velho, Baltasar – Uma voz rasgada interviu.

- Não se intrometa velho, todos conhecem as leis antigas daqui, todos as seguem. Não é por que é seu lacaio que vai ter tratamento especial.

- Só estou preocupado com sua segurança, mas a decisão final é somente sua, contudo admito que sentiria falta de suas piadas sem graça e de sua bebida ruim.

- Está de brincadeira, velho? O que esse barriu de banha poderia fazer com minha arma apontada para sua cara feia?

- Ter uma apontada pra essas coisas mortas que você insiste em chamar de testículos - Respondeu Big Jack de forma mansa e firme.

Agora que Baltasar viu que em cada uma das mangas do uniforme dele há pequenas pistolas de três tiros. Antes mesmo de sua carabina chegar ao queixo de seu alvo seus órgãos sexuais já estavam na mira. Big Jack sorri e com a outra mão aponta para um segundo homem que estava escondido mais atrás, na certa para interferir caso a primeira ação de Baltazar desse errado justamente como agora.

- E mantenha seu cachorro no canto dele, se eu chegar a vê-lo mostrar os dentes explodirei suas bolas e a cabeça dele. – A risada de Voz de Navalha se espalha pelo estabelecimento e vai até a entrada do lugar, de fora quem escutar pensará que é somente mais uma farra entre amigos.




***


Quarto 213. Os lençóis da cama estão intocáveis, as luzes se encontram apagadas e nenhum serviço de quarto fora utilizado. Um homem está sentado numa poltrona próximo à janela, seus olhos fixam as luzes da cidade enquanto sua mão desliza sua arma no braço da poltrona fazendo o tambor girar, provavelmente permaneceria assim até amanhecer se não fosse pelo som das batidas na porta. Três batidas para ser exato. Ele levanta-se e vai atender sem pressa e apesar da arma em punho não pareceu estar aflito, nervoso ou mesmo preocupado, pareceu apenas estar recebendo alguém na sua própria casa. Ao abrir a porta uma linda e jovem mulher de vestido vermelho, cabelos negros ondulados caindo sobe seus ombros, usando uma bota de salto até os joelhos. Sua boca ela enfeita com batom que faz seus lábios parecerem aveludados e uma cigarrilha, seus olhos ela oculta com óculos de cor roxos escuro. Sua voz soou falsamente doce:

- Não vai me convidar para entrar? Afinal foi sua voz quem me chamou para vir até sua sombra... Meu esposo.

- Da última vez que a convidei ganhei de presente de boas vindas uma linda faca nas costas, lembra?

Ela se afasta da porta e dá uma pequena volta mostrando-lhe que não há como esconder nada em seu vestido de tecido tão fino que modela o corpo. Ao parar novamente em sua frente ela ainda passa as mãos nos cabelos para dar-lhe a certeza que não possui nada oculto, finalizando assim com um leve sorrisinho jovial:

- Viu? Limpa como a neve.

- Duvido muito... – Ele abre espaço para ela entrar e prossegue antes dela dar o primeiro passo – Mas deixe as botas aí mesmo no corredor.




***




São quase dezenove horas, a família Lock está toda reunida para a hora do jantar, fora a época da guerra eles nunca comeram separados. A refeição é feita logo após as preces realizadas dessa vez pela graciosa Aria, seguido do habitual barulho de qualquer família onde em sua maioria sejam jovens e crianças, o que para Richard que veio de uma família grande é motivo de profunda alegria ter todos os dias essa mesma balbúrdia. O resto decorre como o de sempre. Uma vida comum, simples e feliz de uma família afortunada e abençoada pelos frutos do trabalho duro e honesto. No fim da noite os filhos já se encontram na cama perdidos em seus sonhos, os pais se aninham em seu leito aproveitando a paz de agora para trocarem caricias e brindar o amor que têm um pelo outro. Somente o velho Aeon permanece acordado sentado na varanda da casa admirando a soturna noite e aproveitando para sentir um pouco a ausência do calor que lhe perturba todos os dias. Com certa dificuldade, não pela falda de uma perna, mas sim pela idade que já o derruba em pequenas tarefas, ele senta nos degraus da entrada da varanda e acende seu cachimbo. Ele não saberia dizer quando foi que chegaram, mas não levou nem dois segundos para reconhecer aquele velho miserável magro, todo de preto, sempre com aquele maldito quepe e uma cicatriz passeando pela sua face, acompanhado por um enorme homem largo e gordo com passos leves. Ele não deu o trabalho de levantar-se, aguardou até que os dois visitantes se aproximassem e apenas se dispôs a levar sua mão esquerda a sua pistola alemã e deixá-la escondida para que não vissem que está armado. Ao chegarem o grande ficou mais para trás enquanto o magro foi aos poucos se acomodando nos degraus juntando-se a Aeon:

- Como vai Voz de Navalha? – Disse em um tom até amigável.

- Neste presente momento nada bem, meu velho. E é bem provável que você também não ficará após a notícia que lhe trago sem qualquer ânimo, mas com a devida urgência. – Ele olha para Aeon e em seguida para a entrada da casa – É seguro ablamos aqui?

- Sim... Yá. Todos estão nos braços do distinto Morpheus. Além do mais já foi o tempo de segredos nessas estruturas. Mas vamos, diga-me velho. Que trágica notícia me traz tão tarde da noite?

- Creio que de principio irá teimar em duvidar, mas a fonte é mais que confiável, tanto que Nem me dei o trabalho de conferir se é um fato ou ilusão causada pelo queimar do verão – Seu dedo ossudo aponta para Big Jack.

- Perdoe-me se logo de princípio me antecipo em dizer que não está conseguindo prender minha atenção, mas hoje de fato poucas coisas conseguem causar tal efeito em mim que não seja as peripécias de meu neto Pax.

- Imagino, infelizmente não posso ter certeza, já que a vida não me abençoou com uma família. Contudo afirmo... Hoje, nesse calmo domingo, justamente agora que a igreja e a cidade se encontram desprotegidas de um guardião espiritual, que um fantasma veio a nossa cidade nos visitar.

- Fantasma? Mas do que você fala homem?

- Consegui prender sua atenção, meu velho? Se ainda não cheguei a tanto, pois bem... Deixe-me lhe dizer de quem é o fantasma e sei que se surpreenderá tanto quanto meu amigo ali.

- Mas que maldita cascavel... Fale logo antes que o fogo de meu cachimbo de apague. Pois depois disso será minha hora de entrar e trocar idéias com o Morpheus que me aguarda lá dentro.

Voz de Navalha aproxima sua boca sem lábios para bem perto do ouvido de Aeon e o nome que ele pronuncia vem junto com um forte vento trazendo frio para aqueles três que se encontram dentro da noite. Seu cachimbo apaga e seus olhos se arregalam, não como alguém que acabará de ver um espírito, mas sim como alguém que se deparou com o demônio que comprou sua alma e que agora veio cobrar. Faltaram-lhe forças para levantar-se, ficou ali parado vendo os dois visitantes se afastarem. O magro ainda de longe disse algo, mas o vento não o deixou ouvir ou talvez o nome em sua cabeça ecoando não lhe permitiu escutar. Aeon não iria entrar para dormir naquela noite, veria o dia nascer como há muito tempo não fazia. Sua filha o encontraria sentado na varanda e pensaria que como sempre ele acordou antes de todos.

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